domingo, 21 de dezembro de 2008

- Memória: «Mataram o Rei no Terreiro do Paço!»


Memória: «Mataram o rei no Terreiro do Paço!»


O Regicídio



Sob um pálido sol de Inverno, há precisamente um século, D. Carlos I, penúltimo Rei de Portugal, e o príncipe herdeiro, Luís Filipe, eram assassinados a tiro em plena Praça do Comércio (vulgo Terreiro do Paço), em Lisboa, por dois conspiradores republicanos ligados à sociedade secreta Carbonária. O calendário assinalava 1 de Fevereiro de 1908. Este é o resumo seco de um acontecimento cujos contornos nunca seriam totalmente esclarecidos. O eco dos tiros abalou a vida política nacional, anunciou para breve o advento da República (que seria implantada daí a menos de três anos), deu a volta ao mundo e ainda hoje pode ser ouvido, se escutarmos bem.

Gordo, tratando por tu toda a gente, apreciador de bons charutos e de outros prazeres da vida, grande caçador perante o Eterno, pintor de paisagens e retratos, oceanógrafo por dedicação, político a contragosto mas nem por isso menos intervencionista, hábil diplomata, Carlos de Bragança foi o primeiro chefe de Estado português vítima de homicídio. Mas não o ultimo: Sidónio Pais, o «presidente-rei», seria igualmente baleado por um pistoleiro, no dia 14 de Dezembro de 1918, na Estação do Rossio. Outra morte violenta (que não homicídio) de um soberano terá sido a do inconsciente D. Sebastião, em 1580, na funesta batalha de Alcácer Quibir. Quanto a atentados à vida do número um da hierarquia sem consequências de maior (para os visados, entenda-se), D. José sofrera já um, em 1758, ou pelo menos o Marquês de Pombal assim o fez constar.

Um país (sempre) em crise

Lisboa, que fervilhava de republicanismo nos últimos tempos da monarquia, era há cem anos uma cidade não totalmente diferente da que hoje conhecemos, e mesmo bastante parecida com a da infância de alguns de nós, com os eléctricos a tilintarem nos carris, os ardinas a apregoarem jornais, as varinas com as suas canastras, as senhoras a fazerem compras na Baixa e os homens a conversarem nos cafés ao fim da tarde. A crise político-económica, mais ou menos endémica neste país, vinha já de trás na sua modalidade finissecular: ressentimento antibritânico devido ao Ultimato de 1890 (contra as pretensões coloniais portuguesas aos territórios entre Angola e Moçambique), défice financeiro, desigualdades sociais, pobreza generalizada, endividamento externo. Se o panorama não diferia muito do de hoje, o País, ainda essencialmente agrícola, era porém quase auto-suficiente em matéria alimentar e ia tentando encontrar saídas para a crise sem receber coisa que se parecesse com directivas comunitárias.

O regime político era formalmente democrático e marcado pelo protagonismo de dois partidos, o Regenerador, de Hintze Ribeiro, e o Progressista, de José Luciano de Castro, que se alternavam rotativamente no poder, à semelhança do que hoje se passa com o PS e o PSD. Esse sistema ficou mesmo conhecido por «Rotativismo». As eleições eram porém menos transparentes do que as actuais, admitindo «chapeladas» levadas a cabo pelos caciques locais. Os poderes constituicionais do Rei iam muito além dos que actualmente detém o Presidente da República, permitindo-lhe nomear a seu bel-prazer chefes do governo independentemente da cor da maioria parlamentar. Quase sempre, o parlamento (que era bicamarário e se chamava Cortes, como ainda hoje em Espanha) funcionava como «força de bloqueio», e as sessões eram agitadas, sobretudo as da Câmara dos Deputados desde que o Partido Republicano elegia representantes. A rua também se tornara turbulenta, com manifestações, tumultos e mesmos algum terrorismo bombista. Além disso, era um tempo em que os atentados contra os soberanos se tinham tornado uma prática mais ou menos comum, por essa Europa fora. «Nós, os reis, sofremos de todas as doenças das pessoas comuns e mais uma: o atentado», dizia D. Carlos com ironia amargamente premonitória.

Sangue na tarde

A certa altura, esse rei sempre hesitante entre a lucidez e a cegueira, decidiu depositar toda a confiança em João Franco, um regenerador dissidente dotado de grande verve oratória que fundara um novo partido, o Centro Regenerador Liberal. Combinaram ambos governar em ditadura, ou seja, sem o «empecilho» parlamentar. As sessões de S. Bento foram, pois, suspensas. Não era a primeira vez que se fazia tal coisa. Além disso, um decreto estipulava que os agitadores políticos seriam deportados para as colónias. Escusado será dizer que foi pior a emenda do que o soneto: acusado de ditador tanto pelos republicanos como pelos monárquicos dos partidos tradicionais, que eram a maioria, João Franco e o seu governo estavam condenados a prazo. Quanto ao rei, tornou-se decididamente o símbolo a abater pelos que preconizavam uma mudança drástica de regime: a substituição da Monarquia pela República.

Depois de uma frustrada tentativa de golpe em 28 de Janeiro, quatro dias depois ocorrem os trágicos acontecimentos do Terreiro do Paço. A família real regressava de Vila Viçosa, em cujo palácio e propriedades passara, em caçadas, o mês de Janeiro. Os últimos Braganças iam para lá muito no Inverno, reservando para as estadas de Verão o Palácio da Pena, na serra de Sintra (em Agosto, sobretudo) e a Cidadela de Cascais (nos finais de Setembro e em Outubro). O comboio que trazia D. Carlos, a rainha D. Amélia (uma francesa da casa de Orleães que casara com o rei português em 1886) e o príncipe Luís Filipe, herdeiro do trono, descarrilou em Casa Branca e atrasou-se uma hora e meia. Em vez de chegar às 4 da tarde à gare marítima da Praça do Comércio (que ficava no ponto oposto àquele em que hoje se encontra, ou seja, para o lado do Cais do Sodré), o barco do Barreiro que estabelecia a ligação apenas atracou perto das 5 e meia. À espera, entre muitos políticos, encontravam-se o filho mais novo dos reis, futuro D. Manuel II, que viera de Vila Viçosa dois dias antes, e João Franco, o «ditador».

Os Braganças tomaram depois lugar numa carruagem descoberta do tipo laudau, que, rumando ao Palácio das Necessidades, subiu a Praça do Comércio pelo lado esquerdo, passando junto dos Correios. A circulação em Portugal fazia-se então pela esquerda, só tendo passado para a direita em 1927. E, como ainda não fora aberta a Avenida Ribeira das Naus, a passagem pela Rua do Arsenal tornava-se obrigatória.

Foi perto da esquina dos Correios que os regicidas atacaram. Um deles, Manuel dos Reis Buíça, transmontano de 31 anos, separado e com uma filha, ex-sargento do Exército, professor primário e atirador exímio, fez fogo sobre o rei com uma moderna carabina Winchester que levara escondida debaixo do longo capote varino e que lhe fora fornecida nunca se apurou por quem. Alfredo Costa, alentejano de 23 anos, saltou para o estribo do landau em que seguiam o rei, a rainha e os dois filhos e fez fogo com uma também moderna pistola Browning. Seriam os dois logo abatidos por agentes da polícias e por um oficial do exército, bem como um terceiro indivíduo que tudo indica estar inocente.

Na altura, o regicídio foi considerado algo de natural pelos republicanos e pelos lisboetas em geral. Naturalmente, ninguém se vangloriou do feito, que foi tacitamente atribuído a uma decisão isolada dos dois regicidas. Sabe-se agora que, como é natural, se tratou antes de um plano articulado, que, além dos membros da Carbonária, envolvia muitas mais pessoas, possivelmente algumas «bem colocadas».

Sensação no New York Times

Uma reportagem publicada no New York Times em Julho seguinte titulava sensacionalmente: «Mistério no assassínio do rei de Portugal. Diz-se que a rainha Amélia reconheceu num dos assassinos um proeminente líder político, mas guarda firmemente o seu segredo.» A revelação teria sido feita por José de Alpoim, líder da Dissidência Progressista e futuro republicano, na Câmara dos Pares, e aludia ainda a um complot progressista-regenerador, com auxílio dos republicanos, para matar D. Carlos e João Franco, tendo para o efeito sido pago a Buíça e a Costa o equivalente, respectivamente, a 20 mil e 10 mil dólares.

No artigo lia-se: «Quando os assassinos dispararam sobre os ocupantes da carruagem real, a rainha Amélia, que instintivamente protegeu o príncipe Luís com o escudo do seu corpo, deparou com o rosto de um homem de pé e um pouco recuado entre a multidão e que estava a sacar uma carabina de debaixo do sobretudo. Durante um segundo os seus olhos encontraram-se, num mútuo e horrível reconhecimento. Então o homem recuou e foi ocultado pela turbulenta massa de polícias, soldados e cidadãos. Quem era? A rainha não tem a certeza. Sabe que já o viu antes, que provavelmente já falou com ele. Mas de uma coisa está certa: outros homens, para além de Buíça e de Costa, dispararam sobre o seu marido e os seus filhos, homens que pareciam esperar, prontos para ajudarem os assassinos activos a escaparem, mas que, no momento crucial, ergueram também as carabinas e dispararam contra a carruagem. A descrição da rainha Amélia é confirmada pelo duque do Porto [D. Afonso, irmão do rei], que também estava presente.»

E prossegue mais adiante o NYT:

«Desde esse fatal 1 de Fevereiro, foram presas centenas de suspeitos. A rainha olhou para centenas de rostos. Disfarçada, visitou repetidamente a Câmara dos Pares e a Câmara dos Deputados, esperando que aquele que ela acredita ser o chefe se denunciasse por uma pose ou por um gesto. Tudo foi em vão. [...] Os cortesãos não puderam deixar de notar as frequentes visitas do chefe da polícia à rainha, as longas conversas entre ambos e as idas secretas ao parlamento. Com o tempo, algo começou a transpirar. Corre no Palácio das Necessidades o rumor de que a rainha Amélia reconheceu no homem do capote e da carabina um dos líderes políticos proeminentes e que está a esconder a sua identidade por razões de Estado. A sua denúncia conduziria inevitavelmente à revolução, com o derrube da dinastia e possivelmente o estabelecimento de uma república.»

Seguiram-se as eleições de 5 de Abril, e no mesmo número do NYT lê-se ainda:

«Cedo se tornou evidente que a força real dos republicanos na Câmara dos Deputados era muito mais formidável do que a sua representação nominal. Vinte e cinco progressistas e regeneradores eram republicanos disfarçados. Isto era inquietante, para não dizer alarmante, para as facções do governo, possivelmente para o rei e a mãe. Foi então que o episódio da rainha Amélia e do misterioso regicida voltou à actualidade. Os progressistas, os regeneradores e os republicanos insinuaram em tom misterioso que o homem em questão era José de Alpoim. Os dissidentes [de José Alpoim] fizeram então acusações retaliatórias na imprensa. Houve uma nova onda de prisões. Correram rumores de nova conspiração. [...] Outras histórias postas a correr pelos antigos amigos de João Franco, sem identificarem a nova conspiração com um partido específico sustentam que Buíça e Costa tinham cúmplices políticos que trabalham para destruir a dinastia e proclamar a república depois de matarem a rainha Amélia, o rei Manuel e o infante Afonso.»

A reportagem rematava com estas palavras sibilinas: «Mas seja o que for que o futuro próximo reserve a Portugal, duas coisas devem ser retidas, quer as consideremos indepedentemente quer em conjunto. Uma é o silêncio da rainha Amélia, outra a maioria absoluta de republicanos entre os eleitores portugueses».

O atentado visto de França

As especulações e os boatos eram, pois, em grande número. Em contraste com o artigo do jornal nova-iorquino, bem mais serena era a crónica do jornalista francês Gérard de Beauregard, especialista em assuntos portugueses, publicada a 8 de Fevereiro na revista L’Illustration, de Paris, que descreve o atentado e os seus antecedentes imediatos e onde se lê a dada altura:

«Como sempre, a família real tomou o comboio na estaçãozinha que fica a um quarto de légua do palácio [de Vila Viçosa]. Depois de ter passado pela velha e venerável cidade de Évora, alcançou a Linha do Sul em Casa Branca, contornou a colina feudal de Palmela e atingiu o Tejo no Barreiro, ao sul e em frente de Lisboa. Dali, um vaporzinho atravessa o Mar da Palha em meia hora e depõe os viajantes no cais da Praça do Comércio. Conta-se que ao aproximar-se do cais, a rainha, na proa do barco, sorria e fazia sinais ao seu segundo filho, Dom Manuel, regressado a Lisboa alguns dias antes, por causa dos seus estudos militares, e que aguardava no pontão. Seria, por muito tempo, o seu último sorriso…

«Ao pisar terra firme, depois de ter beijado o filho, recebeu um ramo de flores, o mesmo de que se serviria daí a pouco para afastar os assassinos. Flores contra balas!… Após uma longa conversa do rei com o seu ministro, João Franco, os soberanos e os dois filhos subiram para um landau descoberto. [...] Afastando-se do Tejo, o cortejo contornou o grande torreão do Ministério da Guerra, seguiu ao longo das arcadas da Praça do Comércio e chegou perto da esquina da Rua do Arsenal, onde fica a estação central dos Correios e Telégrafos. Aí produziu-se um drama terrível, que toda a gente agora conhece. [...] No meio das detonações, dos gritos e da desordem que se imaginam viu-se a rainha de pé agitando as flores e depois lançando-as contra os regicidas, apelando, suplicando com a voz e com o gesto, enquanto D. Carlos, arquejante e inundado de sangue, tombava no assento.

«Mal se recompuseram, os cocheiros, conduzindo a carruagem, venceram os cem metros que separam a Praça do Comércio dos Paços do Concelho e entraram a galope pelo portão do Arsenal da Marinha, aberto á pressa. O duque do Porto, irmão do rei, que, como era hábito, seguia no seu automóvel, apeou-se e correu de revólver em punho para o centro do tumulto, enquanto a polícia, em escassa quantidade, e um oficial às ordens, abatiam prontamente dois dos assassinos e provavelmente um inocente.

«Houve então, na praça, um tremendo salve-se quem puder, empurrões, espezinhamentos selvagens. Os mirones fugiam em todas as direcções, escondiam-se atrás das colunas dos ministérios, atrás da estátua de D. José… É impossível descrever a abominação daqueles dois longos minutos! [...] Em menos de um quarto de hora a praça ficou deserta. Os fugitivos levavam através de Lisboa a notícia de que algo de terrível acabava de acontecer. [...] Às 5 e meia toda a Lisboa estava na rua; em poucos segundos cavou-se o vazio e a consternação por toda a parte».

O enviado especial veio no Sud

A mesma prestigiosa revista enviou a Lisboa o repórter Gustave Babin, incumbido de descrever aos leitores o ambiente que se vivia na capital portuguesa nos dias subsequentes ao atentado. Escreve ele:

«Há uma hora apenas, nós todos, que o Sud-Express acaba de despejar nestas calçadas onde ecoa o galope das patrulhas a cavalo, não conhecíamos do terrível drama senão a lacónica notícia [do regicídio].

«[...] Embarcados à pressa no comboio mal chegara o primeiro despacho, esperávamos ir obtendo notícias mais concretas ao longo da viagem; primeiro em Bordéus; a seguir em Biarritz; depois, desiludidos, esperávamos ao menos apurar algo em Salamanca, ao cabo de uma noite povoada de pesadelos profissionais. Outra ilusão! Até mesmo na estaçãozinha fronteiriça onde está a alfândega portuguesa, Vilar Formoso, ninguém sabia nada que nós próprios não soubéssemos já – a não ser que toda aquela gente respeitasse com uma firmeza heróica uma directiva de discrição excessiva. Também não era visível qualquer aparato de forças fora do comum nesta primeira estação portuguesa. Nem um polícia à vista. Não havia a recear nem uma das medidas policiais que temêramos. Abertas as malas, os agentes do fisco cumpriam o seu dever com fleuma, sem um zelo intempestivo, e podia mesmo especular-se, face ao pouco rigor dos inquéritos, que uma grande mola afrouxara lá em cima.

«Rolamos agora placidamente, a meio vapor, num deserto pedregoso, abrupto, áspero. Nunca tinha visto tanto granito num só dia. [...] Nos campos magros, exíguos, penosamente conquistados, penosamente guardados, sobe à tona uma espuma de seixos. Lá ao fundo, numa ravina, serpenteia um rio cujas águas em tumulto vamos acompanhando durante léguas e léguas. E, no entanto, um sol muito doce brilha sobre este caos de uma beleza feroz e desoladora, um sol louro mas que projecta sombras demasiado opacas e pesadas para que tenhamos a ilusão da Primavera.

«[...] Mas somos incapazes de fixar por muito tempo a atenção nesta impressionante paisagem: só de tempos a tempos, como que para repousar… E logo os nossos pensamentos voam de novo para Lisboa, para as tragédias possíveis, para o terrível desconhecido…

Finalmente!… Cruzámo-nos numa estaçãozinha cujo nome não retivemos com o Sud-Express que partiu esta manhã de Lisboa para Paris e que estava prestes a largar de novo. Em 20 palavras, um prestável viajante debruçado da portinhola tentou satisfazer a nossa avidez e anunciou-nos que a capital está calma, muito calma, que há um novo rei que ‘corre tudo pelo melhor’. Os dois comboios separaram-se logo, prosseguindo cada um o seu caminho, nós com as mãos cheias de jornais que, gentilmente, nos forneceram na paragem. Na primeira página do que me coube, o Notícias, destaca-se em puro francês, em letras garrafais, a fórmula sacramental: ‘Le Roi est mort, vive le Roi!’

«Começou assim um novo reinado no próprio instante em que o rei Carlos e o filho mais velho tombavam sob as balas dos assassinos. Principiou um reinado, sem agitações, e sobre o qual assentam grandes esperanças.

«Sob este novo monarca ferido, de braço ao peito, incapaz portanto de segurar o ceptro e o globo simbólicos, Lisboa está pacífica. Embarcámos ansiosos, dando rédea solta à imaginação, sonhando com motins, barricadas, revoluções, para afinal vir a saber à chegada que ‘corre tudo pelo melhor’!

«Para mim, a sensação não é nova. Lembro-me ainda da angústia que me apertava a alma quando, há cinco anos, o comboio que me levava a Belgrado parou no começo da ponte que fica na fronteira da Sérvia. E, depois, a desconcertante chegada a uma cidade não impassível, como nos dizem que está agora Lisboa, mas alegre, musical, com ciganos e bailarinas nos cruzamentos e rosas vermelhas ensanguentadas no gradeamento do Konak. [O jornalista francês refere-se ao assassínio do rei Alexandre I e da rainha Draga em 11 de Junho de 1903].

«Ah, sim, Lisboa está calma! Se não fossem as patrulhas de cavalaria com que nos cruzamos, a guarda de capacete prussiano com as lanças a brilharem cruamente à luz dos revérberos, os caçadores de gorros reluzentes precedidos de um oficial com o seu penacho de crina branca, jamais nos creríamos numa capital se não em estado de sítio, pelo menos em ‘protecção reforçada’. Os carros eléctricos, brilhantes de luz, vão e vêm, as carruagens circulam a trote vivo, os passeantes arrastam-se, os cafés regurgitam de clientes e raras são as bandeiras a meia haste.

A emoção é nula porque o duplo crime de sábado não surpreendeu.

Não vou aqui atacar nem defender ninguém. Mas, na verdade, quando acabamos de ouvir da boca de um monárquico leal o ponto da situação portuguesa nos últimos meses, quando se entreviram os excessos de tirania que iriam ser permitidos pelo decreto real publicado na própria manhã de 1 de Fevereiro [que permitia o exílio dos oposicionistas], compreende-se o drama e o desfecho terrível em que acabam de encontrar a morte um rei que fora outrora muito amado e um jovem príncipe inocente - talvez com simpatia pelas ideias liberais.

«[...] No sábado de manhã, muitos dos que leram o decreto exclamaram: ‘El-rei assinou a sua sentença de morte!’ Aliás, este fim estava-lhe reservado há tanto tempo que os organizadores de uma festa de caridade, encarregados de preparar a construção de um estrado onde deveria tomar lugar a família real, recomendavam como precaução indispensável: ‘Façam-no largo, muito largo, para que ninguém possa aproximar-se.’ Mas, quando toca ao destino pronunciar-se, há sempre algo que se esquece: a bala que vem de longe ou o facto de os guardas mais conscienciosos nada poderem fazer contra corações decididos.

«Acompanhado de guias de confiança, à praça trágica, a Praça do Comércio. [...] Será necessário recordar o acto breve e violento? [...] Na própria noite, João Franco, o ditador, foi apresentar as seus cumprimentos e os votos de um reinado longo e próspero ao novo monarca, D. Manuel, imediatamente proclamado… Que encontro esse!

«A velha rainha Maria Pia, irmã de outra vítima sangrenta, Humberto I, rei de Itália, encontrava-se ao lado do jovem rei e da rainha Amélia, que rapidamente se recompusera e se apresentava enérgica e implacável. O sr. Franco teve de encaixar os veementes anátemas desta mãe, desta viúva, as ameaças, diz-se, do duque do Porto, irmão do rei, que ameaçava com actos de violência, e censura muda do seu soberano.

«Mas D. Manuel começou por não aceitar a demissão que, segundo era uso, lhe apresentou o primeiro-ministro. Foi preciso que no dia seguinte o seu conselho, reunido de emergência, lhe apontasse como medida necessária, até no interesse dos próprios, o afastamento do poder do sr. João Franco e dos seus colaboradores. É este o preço da paz e da felicidade do reino.»

O dia seguinte

Logo após o regicídio foi aclamado rei D. Manuel II. João Franco, que ainda tentara desculpabilizar-se, seria afastado da chefia do governo, tendo para o seu lugar sido nomeado o almirante Ferreira do Amaral. O breve período de 32 meses que mediou até ao fim da monarquia caracterizou-se pela restauração de todas as liberdades, pela aproximação do executivo com os republicanos e ficou conhecido como «Acalmação». Mas a força do movimento republicano era imparável e em 5 de Outubro de 1910 revoltava-se uma boa parte da guarnição militar de Lisboa, as tropas monárquicas não ripostaram e D. Manuel II, a mãe e a avó partiam para o exílio. A bandeira nacional passava de azul e branca a verde e vermelha e a reforma ortográfica (nomeadamente com a queda do ‘ph’, do ‘y’, do ‘k’, do ‘w’ e das consoantes dobradas) haveria de ser uma das primeiras medidas de alcance duradouro do novo regime, que socialmente não foi tão longe como se esperava e, desgraçadamente, duraria apenas 16 anos na sua primeira fase democrática.

A História não é feita de compartimentos estanques. Há uma continuidade indesmentível entre a política do tempo de D. Carlos e a de agora. Existe um fluxo ininterrupto de intenções e de gestos de alcance político e social desde que o território é habitado, com especial incidência afectiva desde que o conde Henrique de Borgonha e o seu filho Afonso Henriques lhe deram o nome que hoje se mantém. Inevitavelmente, houve períodos de escuridão neste devir histórico, o último dos quais foram os tristes 48 anos de ditadura total, entre 1926 e 1974.

O regicídio foi ontem. Foi ainda hoje de manhã.
fonte : Revista Visão

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